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Bom apetite, antropófagos!

Salvador, Pindorama, ano 456 da deglutição do Bispo Sardinha.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Antropofagia nas artes plásticas

No dia 11 de janeiro de 1928, a pintora Tarsila do Amaral oferece a Oswald de Andrade, como presente de aniversário, uma de suas recentes pinturas, sem saber que ela viria a ser a propulsora de uma das mais originais formulações teóricas sobre a natureza específica da arte moderna brasileira. Enquanto contemplava aquele estranho homem pintado por Tarsila, de pés enormes fincados na terra, cuja pequena cabeça parece apoiar-se melancolicamente em uma das mãos, cercado por um ambiente seco e quente, tendo como testemunha apenas o céu azul, o sol e um misterioso cacto verde, Oswald de Andrade foi indagado por seu amigo e escritor Raul Bopp, que o acompanhava na observação: "Vamos fazer um movimento em torno desse quadro?". Abaporu, 1928, que em tupi-guarani significa "antropófago", foi o nome escolhido para aquela figura selvagem e solitária.
Funda-se em seguida o Clube de Antropofagia, juntamente com a Revista de Antropofagia, em que é publicado o Manifesto Antropófago escrito por Oswald de Andrade como o cerne teórico do movimento nascente, que se dissolve com a separação entre ele e Tarsila, em 1929. Com frases de impacto, o texto reelabora o conceito eurocêntrico e negativo de antropofagia como metáfora de um processo crítico de formação da cultura brasileira. Se para o europeu civilizado o homem americano era selvagem, ou seja, inferior, porque praticava o canibalismo, na visão positiva e inovadora de Andrade, exatamente nossa índole canibal permitira, na esfera da cultura, a assimilação crítica das idéias e modelos europeus. Como antropófagos somos capazes de deglutir as formas importadas para produzir algo genuinamente nacional, sem cair na antiga relação modelo/cópia, que dominou uma parcela da arte do período colonial e a arte brasileira acadêmica do século XIX e XX. "Só interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago", bradou o autor em 1928.
Em linhas gerais, o Modernismo da Semana de 22 caracteriza-se por uma dupla vocação: atualizar o ambiente artístico brasileiro, colocando-o em contato com as diversas linguagens das vanguardas européias e ao mesmo tempo voltar-se para apreensão do Brasil, em um projeto consciente de criação de uma arte brasileira autônoma. Uma proposta de equação entre as duas inclinações (internacionalista e nacionalista) já se encontra no centro do Manifesto Pau-Brasil, 1924, de Oswald de Andrade, no qual o autor resolve o problema da tensão entre a cultura civilizada e intelectual do colonizador e a nativa e primitiva do colonizado mediante um "acordo harmonioso que se produziria na realidade, graças a um processo de assimilação espontânea entre 'a floresta e a escola' ", como notou Benedito Nunes.
Se em 1928 o escritor não abandona por completo esse ideal utópico de síntese entre o modelo europeu e a experiência do primitivo, acrescenta-lhe, no entanto, o primitivismo como arma crítica seletiva, na imagem do selvagem que devora e assimila apenas o que interessa, destruindo todo o resto. Proclama - contra todas as "catequeses", todos os importadores de consciência enlatada, o Padre Vieira, as elites vegetais, a verdade dos povos missionários, o índio de tocheiro, Anchieta, Goethe, e a corte de D. João VI e, por fim, a realidade social, vestida e opressora - a "realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituição e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama". Pois se é inevitável a assimilação das conquistas da civilização moderna, é preciso que o brasileiro se eleve à cultura "desde que conserve as qualidades bárbaras das origens bugre e africana", como observou Mário Pedrosa.
Nota-se que Oswald de Andrade exerce esse mesmo procedimento antropofágico ao transformar o estigma de canibal em qualidade, afirmando-o positivamente como constituinte da essência desrecalcada brasileira. Naturalmente não é o primeiro a utilizar a imagem do antropófago. Esta é corrente na literatura européia dos anos 1920, valorizada sobre o pano de fundo da redescoberta das culturas primitivas da África, América e Oceania pelas vanguardas artísticas. A temática do canibalismo comparece em autores tão diversos quanto o poeta futurista Filippo Marinetti, o pintor surrealista Francis Picabia, que edita sua revista Cannibale em 1920, o poeta Blaise Cendrars, entre outros. Certamente o autor dialoga com o movimento europeu, mas confere a imagem originalidade quando a transforma em metáfora de um procedimento criativo, ativo e crítico, gerador de uma arte brasileira moderna e autônoma.
No caso de Tarsila do Amaral, o procedimento poético de sua pintura, dita antropofágica (1928 a ca.1929) - que além do Abaporu, compreende também O Ovo [Urutu], 1928, A Lua, 1928, Floresta, 1929, Sol Poente, 1929, Antropofagia, 1929, entre outras, e da qual A Negra, 1923 é considerada precursora - caracteriza-se pela "desarticulação da forma construtiva", mediante a submersão na "materialidade cultural" brasileira. Sem esquecer o aprendizado moderno de redução formal e planificação do espaço pictórico, a artista cria, com o uso estilizado de formas arredondadas e cores emblemáticas (principalmente tons fortes de amarelo, verde, azul, laranja e roxo), um alegre universo "selvagem", que se liga a um mundo onírico, mágico (das lendas indígenas e africanas), primitivo, profundamente enraizado na cultura popular brasileira. Entretanto, vale lembrar, seguindo a argumentação de Sônia Salzstein, que a fase "antropofágica" de Tarsila não deve ser considerada como simples ilustração de uma teoria. Seu próprio desenvolvimento artístico a teria levado a esse momento de relação crítica com o aprendizado francês, de certa forma antevendo plasticamente a plataforma antropofágica oswaldiana.
A partir dos anos 1930, com o agravamento da situação econômica e social com o craque da Bolsa de Nova York em 1929, do qual Oswald de Andrade é uma das vítimas, e a instauração do período getulista (1930-1945), a questão do "moderno" como tensão entre nacional e internacional toma outros rumos, sendo discutida em termos diversos, pelo menos até o fim dos anos 1960. Oswald renega o "sarampão antropofágico" durante os anos 1930, voltando a ele somente no fim da década de 1940. A idéia de antropofagia como procedimento estético só é conscientemente retomada, em meados dos anos 1960, com a montagem da peça O Rei da Vela, pelo Teatro Oficina, e o movimento tropicalista de 1967-1968. A institucionalização desse conceito dá-se em 1998 quando a 24ª Bienal Internacional de São Paulo, de maneira discutível, é organizada segundo o tema "Antropofagia e Histórias de Canibalismo", propondo a construção de uma outra história mundial da arte, ou seja, uma história que adotasse um ponto de vista não-eurocêntrico. Propõe-se então a atualização e, curiosamente, a internacionalização da antropofagia oswaldiana.

8 comentários:

  1. Ser antropófago é ter coragem e atitude para assumir idéias e comportamentos autênticos. À primeira vista, essa atitude pode passar uma imagem de “subversão”, mas não deixa de ser um modo de analisar e criticar idéias prontas “importadas” como sendo a melhor, e transformar isso em “produto” nacional. Atualmente vivemos num bombardeio de informações, portanto é preciso ter sensibilidade para perceber e selecionar aquilo que realmente nos interessa e traz algum sentido. Até porque não podemos perder as nossas referências culturais, prejudicando assim nossa identidade primitiva.

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  2. Deixo aqui uma citação do artista plástico que, na minha opinião, é o mais antropofágico da nossa cidade na atualidade.
    “Para mim, só é artista quem avança e transgride, aí se está fazendo arte. Porque apenas fazer muito bem uma coisa pode torná-lo um virtuoso, mas não faz de você um artista. Se todo mundo que faz bem uma coisa é artista, imagine um artista que faz uma coisa bem?” (Bel Borba)
    Vitor Carvalho – Turma 13 - Noturno

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  3. Não basta criar, a arte permite você se transcender. Aproveitar cada coisa e aprender uma pouco de tudo que é interessante e possível de ser devorado faz de você um ser antropófago. Por isso devore tudo que você quer e sinta o gosto de cada coisa a ser devorada, para que você nao esqueça o sabor de cada uma.
    Lais Almeida - turma 13 - noturno

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  4. Nessa “transformação do estigma de canibal em qualidade” Oswald de Andrade parece buscar a redescoberta da experiência poética através da pureza primitiva do indígena, através do canibal no exercício de sua crítica devoração contra as incivilidades da civilização; como uma possibilidade criativa de renovação das matrizes culturais.
    Na arte de Tarsila a brasilidade grita em tons fortes, tropicais; sem, contudo deixar de ter marcada a influência da arte européia daquele momento – o cubismo.
    Tarsila e Oswald, parte da elite paulista onde a própria vida era uma tentativa de réplica da Europa, vêem a desconstruir e reconstruir a brasilidade através da arte.
    Paula Maria dos Santos - BI Humanidades Noturno -UFBA

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  5. "... nada se cria... tudo se transforma." Assim como foi disseminado por Lavoisier, referindo-se à natureza, creio que aconteça em todas as áreas de conhecimento e atuação humanas que venhamos a ter conhecimento; nada vem do nada, e / ou vira, ou simplesmente, torna-se em nada. Nesse momento, e movimento, antropofágico das artes brasileiras em que buscava-se distinção de tudo (assim como acontece hoje) empurrado goela a baixo por aqueles 'superiores' que determinam o que devemos creditar como cultura, arte, etc - mais precisamente, no período citado, os europeus - buscava-se o reconhecimento do 'nacional' como original e valoroso também. E valendo-se do modo como muitos ainda nos viam (canibais, selvagens) e do sentido etimológico da palavra antropofagia (antro = homem, fagia = ato de comer) que, segundo relatos, na nossa cultura ainda merece ser destacada, pois os índios canibais que aqui habitavam só comiam a carne de seus inimigos valentes, comendo-se simbolicamente o valor do outro, assim se dá também na arte.
    A antropofagia "artística" parte desses conceitos, busca fontes e come, se alimenta, em parte, na cultura e na arte européia de tudo aquilo que por ela é selecionado como válido, porém soma à essa receita ingredientes extremamente nacionais, caricatos da geografia, da cultura popular e do imaginário nacional brasileiro. O que surge é uma conversação extremamente produtiva de conceitos já difundidos e a adição do "marginal" e "selvagem" brasileiro. Foi justamente essa antropofagia, essa fome de devorar, transgredir, comer tudo que é pertinente e válido, que permitiu a construção e o diálogo entre tantas vertentes artísticas diferentes.
    Debora Molina - turma 08 - noturno

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  6. É interessante comentar sobre o movimento futurista, como mencionado sobre Filippo Marinetti, que se tornou o precursor do movimento através da publicação do Manifesto Futurista. Seus seguidores se fixavam no progresso tecnológico do final do século XIX e focavam majoritariamente na publicidade da época, utilizando de tipografias diversas para a criação de poemas com total rompimento de regras gramaticais e tipográficas convencionais. Utilizando-se de figuras de linguagem como expressão e que se tornam extremamente visuais, o movimento tem como lema principal no manifesto a "Liberdade às palavras", onde também questionavam os padrões impostos para a criação dos poemas na época.
    E neste momento houve de fato uma fundição entre a arte e o design. O movimento acabou desaparecendo com a morte dos seus precursores, mas deu ideias de novas estéticas que influenciaram os ideais de movimentos importantíssimos do design, como Bauhaus, De Stijl, Dadaísmo entre outros, assim como estes vem influenciando o design gráfico e a tipografia dos tempos mais recentes.
    Nota-se, portanto, que a antropofagia acaba por se tornar intrínseca ao artista. Não é possível criar sem referências, sem absorver conteúdo, sem se alimentar de todas as fontes para, só então, após tudo mastigado e absorvido, criar seu próprio processo. E agora este não será mais nem o que era antes e nem o que foi absorvido, e sim um produto de tudo o que foi, o que é e a angustia ou a delícia do que ainda poderá ser.

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  7. É muito interessante ver como a antropofagia cultural surge, e como ela é importante... Como dizia Mário de Andrade: "A antropofagia cultural é importante assunto da estética modernista, e foi a partir dela que se iniciou a compreensão de que a arte brasileira não é uma simples cópia da grande arte europeia, mas uma absorção crítica em que se consome o outro e constrói-se algo novo."
    Bianca Belem - T09 (noturno)

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  8. Vejo a antropofagia muito além de um movimento artisto, é algo que estar muito mais ligado aos valores atribuídos à vida e também a uma maneira de compôr seu conjunto de valores. O homem em si é um ser naturalmente antropofágico,metaforicamente falando, o simples fato de admirar algo e assimilar isso,é praticar a antropofagia, e todas as junções desse ato, formam o produto final, a individualidade de cada ser, de cada movimento.
    (BI de artes- Noturno)

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